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Sabores de minas, sabores geraes
FERNANDO RIOS

Angu ralo; ora-pró-nobis, couve, quiabo, jiló, taioba; frango ao molho pardo; cascudo, surubim ensopado, dourado frito, ou vice-versa; milho, mandioca, cará; broa de fubá, brevidade; pão de queijo, pão de queijo, pão de queijo; carne de porco: pernil, lombo, costelinha; carne de vaca: costela bem atolada, carne assada e guardada na banha e depois frita com cebola; pão de queijo; doce de leite; goiabada, goiabada cascão, goiabada cremosa, mangada; queijo branco, queijo cobocó, queijo canastra, queijo do serro; licor de pequi, licor de jabuticaba; tutu com lombo de porco, canjiquinha com costelinha de porco; lingüiça há no mundo inteiro, mas lingüiça mineira, só em minas, nas gerais; chouriço, chouriço, chouriço mineiro.

Minas Gerais é um estado de espírito... de porco, de galinha, de peixe, de vaca. Um estado de espírito que tem corpo e alma. Santo espírito. Estou falando dos espíritos dos sabores e dos cheiros. Tem estado mais saboroso e cheiroso do que Minas Gerais?

É verdade que há muito gado bovino em Minas Gerais. Há muito gado leiteiro. Há muito doce de leite. Há carne de sol e carne seca. Alguém trouxe, é verdade. Nem por isso deixa de ser mais mineira a vaca atolada. Atolou por aqui e ficou.

Nas Minas Gerais, há alimento para o corpo e para a alma. E no alimento para o corpo, transbordam os espíritos do porco, da galinha, do peixe, da vaca, não do boi, que eu nunca ouvi dizer que comem sua carne. As Minas Gerais têm uma misteriosa preferência por porcos, leitões, galinhas, peixes e... vacas.

Os porcos se oferecem, em transbordantes colesteróis, na forma de crocantes pururucas; em pernis assados que deixam transparecer cores que vão do bege ao cor de rosa; em lombos displicentes sobre tutus de feijão; em chouriços únicos no País, juntando vampirescamente sangue, gordura, sal, alho e cheiro verde. Os vampiros mineiros não precisam de gentes para se alimentar. E quase sempre deixam o vampirado e se tornam diligentes coroinhas, ajudantes de padre na missa, carregadores de cruzes que antes os deixavam praticamente imóveis e indefesos. Vampiros mineiros, devidamente perdoados, se refestelam de sangue de porco.

As galinhas caipiras – é verdade que elas existem também em São Paulo ou em qualquer outro lugar do mundo – se nos apresentam numa sofisticada infusão, cozidas em seu próprio sangue, como as lulas em “su tinta”, num molho pardo preparado com sangue e vinagre. Tem mais requinte do que esvaziar o animal de seu sangue, cozinhá-lo nesse mesmo sangue e servir a uma platéia ansiosa e atenta, que já consumiu a melhor água da vida do mundo e a divina lingüiça pedaçuda, cortada na ponta da faca? Frango ao molho pardo, mais uma alternativa para nossos trânsfugas vampiros, nossos Dráculas que nascem nas montanhas das transgerais.

E os peixes, sempre abençoados pelo nosso mais hídrico de misterioso de todos os santos, o São Francisco. Taí uma coisa que é em mineira, original, coisa de origem, coisa que existia antes de qualquer outro brasileiro chegar. Peixe. Dourado, surubim, pra falar em reis e imperadores. Quem é que trouxe os peixes pra Minas? Foi Tupã? Ou Guaraci, ou Jaci, ou Rudá?

E quem foi que ensinou nossos índios mineiros primordiais a cozinhar? E não é por acaso que comemos peixe com pirão. Sem falar na mandioca ela mesma e seus derivados – tapioca, beiju, mingau, farinha. E outras comidas – inhame, jerimum, caju, jenipapo, banana, abacaxi. O cozimento dos alimentos no moquém, grelha de varas usada para assar ou secar a carne ou peixe, produtos que quando são preparados envolvidos em folhas, se transformam na moqueca e paçoca. Coisa antiga, ancestral.

E o boi, ou melhor, e a vaca. Ninguém entende essa preferência feminina quando se fala em carnes de alto coturno. Talvez pelos acepipes advindos do seu leite, seu doce de leite, seus queijos e requeijões, suas balas delícias. E das costelas. Delas poderiam ser feitos outros varões, tantos e tantos bois assinalados. Mas não. Faz-se a vaca atolada, imersa em um caldo de mandioca e cheiro verde. Se Cleópatra soubesse quão deliciosa fica uma carne desse tipo, certamente submergiria num caldo de mandioca para se oferecer a gregos, romanos, troianos, baianos. Carne muito bem temperada.

E que outros espíritos transbordam nos alimentos das Minas Gerais. Espíritos de negros, mais politicamente corretos chamados de afro-descendentes; espíritos de índios, denominados modernamente povos das florestas; e brancos vindos de tantos lugares mas principalmente com o sotaque português e seus saborosos embutidos.

Então juntamos tantos corpos, tantas almas, tantos espíritos, sem esquecer o espírito da cana de açúcar, aquele líquido benfazejo, particularmente indicado para alimentar o espírito, porque o corpo já está mais do que fartamente nutrido, um líquido do transparente ao dourado, batizado pelo nome de cachaça, que começou no litoral paulista nas primeiras décadas do descobrimento e foi plantada e crescida nas Minas Gerais e vale mais do que hidromel ancestral.

Com tudo isso, construímos uma culinária par e ímpar. Par, porque é do seco e do molhado – das farinhas e dos caldos; ímpar, porque é do índio, do negro e do branco (qual seria a cor do índio, e quais são as nossas cores, depois de tantas artes de amores e sabores?)

Vai daí que, depois disso tudo, meu amigo Ricardo Maranhão, insigne figura, professor doutor em brasilidades, especialista em culinárias e suas histórias, escreve e professa uma estranha tese: Minas Gerais não tem culinária, é tudo paulista, coisa de caipiras jecas tatus, bandeirantes, tropeiros (e seu feijão tão bem feito nestas terras de ouro, ferro e manganês, que virou nosso).

Tem cabimento? Ô Maranhão, tá certo que São Paulo tem 500 anos (apesar de eu achar que Minas Gerais tem muito mais); tá certo que os bandeirantes descobriram que existiam as Minas Gerais e seus povos escondidos, tá certo que muitos portugueses que fizeram o nome das famílias paulistanas se enveredaram pelas plagas montanhosas das Gerais; tá certo que foi muita comida portuguesa pra Minas e virou uma beleza de culinária, porque misturou com comida de índio, com comida de negro e deu essa coisa, primeiro, guardada a sete montanhas, pra não falar de mais, e hoje espraiada pelo Brasil afora.

Mas depois de pouquíssima prosa, que mineiro sabe falar pra dentro igual que vento que corta montanhas; depois de muitas ancestralidades criando, matando, temperando, cozinhando, assando; depois de muita cachaça – quem fabrica as melhores aguardentes deste mundo, dentro e fora dos vales geraes? –; depois de tudo isso, essa culinária que teria feito Pantagruel esquecer as europas - correu a se espalhar pelos todos pontos cardeais da bússola, que aqui podemos chamar de pontos papais.

Depois de tudo isso, e muito ouro e ferro e manganês, vem meu amigo Ricardo Maranhão querer surrupiar o nosso mineral sabor... Quê que é isso Maranhão? Pergunta pra qualquer paulista quais são os verdadeiros pratos da culinária bandeirante. E você ouvirá em coro, do litoral santista ao rio Paraná: “pizza, pastel de feira e caldo de cana” (contra os quais, uai, tenho nada contra não senhor!)

SÃO PAULO, NOVEMBRO DE 2006



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