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O muro
FERNANDO RIOS

O muro estava tão acostumado a ele que bastava ele parar para o muro aparecer. Em qualquer lugar. No trabalho, no jogo de bilhar, na bolinha de gude, no pião, no futebol, nos botequins. Às vezes ele pegava um ônibus. E o muro estava lá. Às vezes ele pegava um trem. E o muro estava lá.

Só quando ele viajava de avião, o muro ficava ausente. Pode ser por causa do peso. Um muro, por menor que seja, sempre pesa mais do que o previsto.

Mas ele pressentia. Quando menos esperava, e nem precisava esperar, lá estava o muro. Às vezes, no próprio aeroporto onde ele descia.

O muro tinha outra particularidade: nunca entrava na casa dele. Parece que sabia que não precisava.

No começo era um muro de arrimo. Desses que se parecem com pessoas arrimo de família. Desses que se parecem com amigos. Amigo mesmo, daqueles que não precisam nem de espaço nem de tempo. Só de amizade, essa coisa que torna o olhar quente e o gesto um balaustre.

O muro não era um ombro. Era um muro. Um muro que sustentava. Ele estava bem satisfeito com seu muro.

Às vezes, depois de uma boa noitada, daquelas de muita conversa de lavar a alma e o corpo, depois de bons copos, ele ia cantabaleando por um caminho, o muro ia junto, e ele até mijava no canto do muro. Que nem reclamava nem fedia.

- Aí murinho - ele falava.

Às vezes, ele até dormia encostado no muro. Às vezes, ele até trepava, não de subir, de fazer sexo mesmo, encostado no muro. E o muro firme, inabalável, sereno, respeitoso.

Um dia a mulher dele falou pra ele:
- Eu acho que você gosta mais do muro do que de mim.

E os filhos também disseram:
- Nós achamos que você gosta mais do muro do que de nós.

E ele só respondeu:
- Muro a gente não gosta nem desgosta. É que ele fica lá. Só quer ser muro de alguém.

E no dia seguinte e nos dias seguintes, começou a ser assim.

E depois de uns desses dias assim, no dia seguinte, ele olhou pela janela. E não é que o murinho estava lá fora. Todo empertigado e com uma marquise novinha de telhas francesas.

ABRIL, 2004



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