As identidades enigmáticas
de Ricardo Aguiar
FERNANDO RIOS
I
Alguns quadros se apresentam ao espectador.
Alguns quadros querem ser apresentados ao espectador.
Alguns quadros convidam o espectador a se apresentar.
Alguns quadros apenas atravessam o caminho do espectador.
Alguns quadros pedem para ser decifrados.
Acredito que esse último aforismo diz respeito à obra atual de Ricardo Aguiar.
II
Os quadros de Ricardo Aguiar não precisam de carteira de identidade. Eles são sua própria identidade. Eles se apresentam com uma insuperável inteireza: quadro, moldura, tinta/pigmento, nome da tinta/pigmento. Pronto. Está diante do espectador o enigma.
III
É verdade que as telas de Ricardo Aguiar trazem um conceito minimalista: elas se referem a si mesmas. Eles estão identificadas em si mesmas. Mas fica aí a aproximação minimalista. Enquanto solitárias, elas se bastam. Diante do espectador, elas se transcendem. Penetram o espectador, pelos olhos. Chegam quase a dizer: muito prazer, sou...
IV
Há algo de família em cada quadro e em todos, juntos. Cada um deles estabelece um relacionamento com seu autor, que os nomeia explicitamente e os entrega à vida. A questão familiar está absolutamente expressa no gesto e ato de nomear. Dar nomes, transformar esse nome em elemento pictórico, subjetiva o resultado. Os quadros de Ricardo Aguiar não são objetos, são sujeitos.
V
Ricardo Aguiar constrói seus quadros, Ricardo Aguiar é um construtor de quadros. Mas não é construtivista. Não se trata de minimalismo de Sol Lewitt ou Frank Stella; nem do geometrismo abstrato de Mondrian; muito menos o supramatismo de Malewitch ou o abstracionismo de Kandinsky.
À primeira vista, os quadros de Ricardo Aguiar são enigmas construídos para imobilizar o espectador. Ele realmente se imobiliza mas, em seguida...
VI
Ricardo Aguiar apresenta seu quadro: utiliza um tipo, sem serifa, com caixa alta, para dar-lhe nome. A própria tipografia merece ser nomeada: trade gothic bold (quase uma homenagem à letra Helvética, uma das paixões de Ricardo Aguiar.)
E o quadro passa ter e ser uma identidade; ele é autodenominado. Seu nome é o pigmento, agora enquadrado e exposto ao mundo.
VII
Então, a arte se concretiza e atravessa o nome-pigmento. Assim como o olhar do espectador é interrompido pela nomeação até descortinar a obra. Não se sabe o que se vê primeiro como totalidade: a obra ou seu nome. E emerge um quase paradoxo, uma quase ambigüidade: a obra de arte parece não querer ser nada mais do que aquilo que se apresenta diante do espectador; contudo, passado o imediato, no a posteriori, ela pede uma reflexão.
Se bem que o mistério desta arte esteja justamente nessa indisposição para o estático, por mais despojada que seja, por mais estática que pareça.
VIII
A arte de Ricardo Aguiar acontece na parede, suporte de sua tela, espaço bidimensional de sustentação, e, ao mesmo tempo, no entorno, no espaço tempo tridimensional que a envolve.
A tela de Ricardo Aguiar se instaura enigmaticamente e propõe:
- Decifra-me. Mas se não me decifrares, não tem importância. Não tenhas medo, de qualquer jeito, não te devorarei. Sou suficientemente pacifista para dizer o meu nome e me colocar diante de você e do mundo.
IX
É impossível ficar indiferente a uma tela de Ricardo Aguiar. A uma tela, ao mesmo tempo, calma e explosiva, mesmo sendo preto sobre branco; ou vice-versa.
X
Cada tela se apresenta como a sua própria certidão de nascimento.
E nenhum branco, nenhum laranja, nenhum violeta será o mesmo, depois dessa visão emoldurada de purezas monocromáticas nomeadas, batizadas.
XI
O pintor assume seu papel de pintor:tela, moldura, tinta e pincéis. Pinta, nomeia. E aquela parede/tela, metaparede sobre a parede, com seu nome se apresentando de aluvião, transforma e cor em pura emoção.
XII
Cada uma das cores de Ricardo Aguiar se constitui em presença indelével, vai para o subconsciente do inconsciente e resgata uma ancestralidade pictórica: o suporte no qual o homem pré-histórico desenhou seus primeiros animais.
Naqueles tempos imemoriais, o objeto era objetivado e apreendido pelo homem da caverna.
Agora não, o objeto, a obra de arte, objetivada e libertada pelo artista.
XIII
Ricardo Aguiar resgata o suporte, resgata a cor, propõe um diálogo entre eles e batiza o resultado de maneira prosaica. O nome é o pigmento; o pigmento é o nome. Cor e pigmento se fundem e confundem.
O que deve ser visto: a cor ou o seu nome?
Qual o papel da moldura: guardar ou libertar a obra?
Impossível não ver cada parte da tela e fundi-las conscientemente.
Impossível não questionar identidades subjetivas.
XIV
As telas de Ricardo Aguiar propõem e possibilitam um diálogo entre identidades subjetivas. Mas ele acontece, sobretudo, para além, na memória. E estabelece outro diálogo, mais profundo, permanente, aquele em que o espectador cria na sua consciência futura, sinapticamente.
Será muito difícil o espectador se libertar da imagem enigmática, decodificada ou não, decifrada ou não, registrada para além da retina.
É a arte – sujeito/objeto - que sensibiliza e acompanha o espectador – sujeito e objeto de sua própria emoção.